Fim dos vestibulares?

Compartilho com vocês o texto de Rubem Alves, publicado hoje na Folha de São Paulo. Transcrevo aqui na íntegra:

“Minha neta tinha 16 anos. Ela é inteligente, tem determinação e sua cabeça esta cheia daquelas ideias fantásticas que habitam as cabeças adolescentes. Estava se preparando para o vestibular. No sofá ela lia um caderno espiralado lindamente ilustrado. Biologia, ciência fascinante! Quantas revelações fantásticas sobre a vida deveria se encontrar naquele caderno! Mas ela lê com uma cara de absurdo.

O absurdo produz uma expressão facial característica, mistura de raiva e tédio. Raiva porque é obrigatório que se engula aquilo contra a vontade. Tédio porque aquilo que é obrigatório engolir não faz o menor sentido. E que, por isso mesmo, será logo esquecido.

É preciso que algum fenomenólogo descreva essa expressão fisionômica, tão frequente no rosto dos alunos que se preparam para o vestibular.

Fiquei mordido de curiosidade e quis saber o que ela estava aprendendo de biologia para entrar na universidade. “O que é que você está lendo?”, perguntei. Com uma cara desanimada, ela apontou com o dedo o parágrafo que estava lendo e me passou o caderno. Comecei a ler. E, à medida em que lia, minha cara foi ficando igual à dela. Eis o que li.

“Além da catálise, existem nos peroxíssomos enzimas que participam da degradação de outras substâncias tóxicas, como o etanol e certos radicais livres. Células vegetais possuem glioxissomos, peroxissomos especializados e relacionados com a conversão das reservas de lipídios em carbohidratos. O citosol (ou hialoplasma) é um colóide… no ciosol das células eucarióticas, existe um citoesqueleto constituído fundamentalmente por microfilamentos e microtúbulos, responsável pela ancoragem de organóides… Os microtúbulos têm paredes formadas por moléculas de tubulina…”

Seguia-se uma descrição da complexa rede que forma o rabo do espermatozóide….

A raiva cresceu dentro de mim e quis encontrar um culpado. Pus-me a perguntar: quem tomou a decisão de tornar obrigatório o conhecimento dessas informações? Por que esses saberes devem ser apreendidos? O que é que os adolescentes vão fazer com esses nomes? Nomes, nada mais que nomes…

Esforço inútil, porque tudo será esquecido. A memória não é burra. Não carrega conhecimentos que não fazem sentido. A memória inteligente sabe esquecer. O absurdo educacional dos vestibulares se encontra no fato que eu serei reprovado, os reitores serão reprovados, os professores universitários serão reprovados, os professores de cursinho serão reprovados…

Agora os vestibulares tiveram o seu fim decretado. Fico feliz, porque há mais de vinte anos eu tenho estado lutando por isso. O que me levou a pensar muito e a escrever muito sobre esse equívoco educacional. Parte do que escrevi se encontra no meu site:www.rubemalves.com.br.

Mas tenho um receio. Imaginem um restaurante que servia uma comida de gosto ruim, indigesta e que provocava vômitos e diarreia. O dono do restaurante, diante das queixas dos clientes, resolve fazer uma reforma na forma como a comida era servida: trocou as panelas velhas por panelas novas e a louça branca antiga, por uma louça azul. Mas a comida continua a mesma… Será possível que isso aconteça?” (grifo nosso)