Vicente foi passar o feriado de Carnaval na praia, com os amigos e a família. Ele teria aula com três dos seus professores, depois do feriado, mas tinha decidido faltá-las. Seus pais não se opuseram, porque o ano está somente começando, os conteúdos são mais fáceis e os professores não aprofundam porque muitos alunos não comparecem.
Estava tranquilo e decidido, curtindo seu Carnaval, até que o seu tio Alberto veio visitá-los. Ele tem uns 50 e poucos anos (Vicente nunca lembra), é empresário, investidor e está sempre buscando novidades. Vicente considera interessantes suas ideias sobre a vida. Até mesmo em relação ao vestibular ele costuma ser mais tranquilo em suas abordagens e por isso Vicente conseguia ser mais sincero com ele.
Seu tio chegou e logo que puderam conversar sem ninguém por perto (o que é muito difícil com a família reunida), Alberto perguntou se Vicente estava motivado para o reinício das atividades, o que ele esperava para esse ano e se pensou em alguma estratégia diferente. Por um momento, Vicente se sentiu em uma entrevista de emprego. Mas lembrou que era o seu tio, e não o seu pai. Baixou a guarda, suspirou e pensou antes de responder:
– Pois é, tio… não estou muito motivado. Troquei alguns professores, as piadas já mudaram, mas ainda assim, não sei o que eu posso fazer diferente. Não me sinto muito animado.
– Você já pensou sobre o seu método de estudos? Talvez exista uma técnica diferente daquela que você usa, isso poderia fazê-lo se animar.
– Não sei, não… nunca pesquisei nada a respeito. Os professores sugerem investir em provas e simulados. – Vicente respondeu sem muita convicção. Percebendo essa falta de convicção, Alberto resolveu perguntar:
– E quanto ao seu objetivo em relação à Medicina? Você tem certeza de que é isso mesmo que quer para a sua vida?
– Sim, sim, é isso.
– Isso o quê? – Provocou o tio.
– Medicina!
– Mas por quê? Qual a razão de você querer Medicina?
– Hã… bem… – Ficou gaguejando.
– Porque seu pai lhe disse que era o caminho mais fácil para ganhar dinheiro?
Vicente não respondeu. Mas ele sabia que era por isso, sim. O tio também. Seu pai e seu tio eram muito diferentes. O pai de Vicente escolheu o caminho tradicional. É médico oftalmologista, se sente satisfeito com a remuneração e o reconhecimento adquiridos no exercício da profissão. Procurou influenciar Vicente sem disfarces: costumava dizer que “passaria fome” em qualquer outra profissão. A mãe de Vicente é supervisora escolar, adora o seu trabalho, mas o pai não valoriza, porque o seu salário é muito inferior ao dele. Quanto ao caminho escolhido pelo tio, o pai caracterizava como sendo “aventureiro”. Não é muito afeito a novidades, ainda acredita que talvez tivesse sido melhor o Rio Grande do Sul ter se separado do país na Revolução Farroupilha! Vicente ria desse posicionamento do pai, sabia que não fazia o menor sentido, mas reconhecia que o seu pai era, muitas vezes, antiquado e radical. Ele se preocupava, muitas vezes, com essa falta de visão e de interesse de seu pai pelas novidades. Tinha receio de ficar parecido. A sua esperança de ser diferente se baseava nos pais de seus amigos, que também são médicos, mas não são fechados e arredios às mudanças ocorridas no mundo como o seu pai.
O tio Alberto percebeu que Vicente estava refletindo. Após alguns momentos, repetiu a pergunta:
– Você decidiu fazer Medicina porque seu pai lhe disse que é o único caminho para não morrer de fome e ter status?
Vicente respondeu:
– Talvez. Não sei.
– Olha, Vicente, você precisa pensar. Não vá pelo caminho mais fácil, que é o de não contrariar o seu pai. Se você não enxergar um sentido para a sua escolha, você terá muita dificuldade diante dos desafios, não terá persistência. Cursar Medicina pelo seu pai não é uma boa decisão.
– Minha mãe sempre me diz isso -, Vicente falou baixinho.
– Quando eu tinha a sua idade, teve um cara que muitos de nós admirávamos. Ele era fisiculturista. Já ouviu falar de Arnold Schwarzenegger?
– Vagamente…
– Ele foi um exemplo de força de vontade e superação e influenciou muitas pessoas. Suas ideias e práticas viraram febre na academia e não tinha quem não o admirasse. Eu tive a minha fase Schwarzenegger, de virar rato de academia e tentar ficar musculoso. Mas isso é um momento. Depois, você vai amadurecendo e percebe que o seu objetivo de vida não é o mesmo do cara, você precisa encontrar a sua própria meta, e o exercício físico é somente um meio de qualificar a minha busca. Não era a minha busca, entende?
– Sim… – Respondeu Vicente, começando a se interessar mais.
– Schwarzenegger nasceu em uma pequena cidade na Áustria. Muito jovem, folheando revistas sobre fisiculturismo, decidiu que queria se tornar o Mr. Universo. Ele tinha isso muito claro, enfrentou a pressão da família, que queria que ele seguisse a carreira militar, como o pai. Veja bem, Vicente, ele nasceu em 1947 em um vilarejo na Áustria, se tornou astro hollywoodiano e diversas vezes campeão em sua categoria. Antes de alcançar as suas metas, ele teve de se alistar e servir no Exército, atendendo ao desejo da família. Quando chegou para se apresentar, pensou: “Okey, Arnold, you know the goal.” Ele fez um plano de treinamento extra, quando os demais dormiam. Assim pode se inscrever em um concurso e ser campeão pela primeira vez aos 20 anos. Você pode não gostar muito de fisiculturismo, ou achar que isso é história de velho. Mas essa frase me ajudou e ainda ajuda até hoje, quando enfrento meus desafios pessoais ou profissionais. Digo para mim mesmo: “Ok, Alberto. Você sabe o objetivo.” Isso me ajuda a ter uma visão mais ampla da situação que estou enfrentando e não valorizo tanto as dificuldades menores.
Vicente queria saber mais, estava gostando da conversa, mas foram interrompidos pelas tias, pelos primos, por todos que tinham ido dar uma volta na praia. Seu tio foi embora logo em seguida, e Vicente ficou pensativo. Talvez ele devesse, realmente, aprofundar seus questionamentos sobre a sua escolha, buscar mais clareza quanto às suas reais intenções. Decidiu que voltaria para Porto Alegre amanhã e iria às aulas dessa semana. Poderia ser esse um mantra para o seu recomeço: fazer um esforço extra, como esse tal Arnold “alguma coisa” fez. Pensou, satisfeito consigo: “Okey, Vincent, you know the goal”.